Masculinidades e orientações sexuais dissidentes

Tempo de leitura: 10 minutos

Como está hoje a inclusão de homens GBTQ+ nos novos movimentos de homens? Quais problemas os homens com sexualidades dissidentes enfrentam acerca de sua própria masculinidade? O que é e por que é ainda tão comum a patologização de sexualidades não heterossexuais? Nessa entrevista, conversamos sobre essas questões e algumas outras com Sérgio Bitencourt. Ele que é psicoterapeuta, especialista em psicologia clínica; psicólogo social e jurídico; psicodramatista, terapeuta conjugal e familiar, além de terapeuta sexual.

Por Mateus Rodrigues

Como você vê inclusão dos homens GBTQ+ dentro desses novos movimentos de homens?

Eu ainda vejo uma participação pequena e discreta. Penso que um dos motivos para que seja assim está no fato de que as questões relacionadas diretamente às orientações sexuais dissidentes, principalmente de gays e bissexuais, não são normalmente o foco dos trabalhos. Isso porque os trabalhos acabam sendo em torno de outras questões que não focam diretamente na questão da orientação sexual. Então a gente transita por várias temáticas, como a do sofrimento, da ausência de modelos masculinos saudáveis ao longo da vida, dos relacionamentos, do trabalho, da saúde mental, mas a questão da orientação sexual é geralmente pouco explorada. Acho que porque, de um lado, como disse, essas pautas provocam pouco a emergência dessas questões e, de outro, os próprios homens gays, bissexuais e trans muitas vezes não se sentem à vontade para se colocarem na sua diferença.

Você notou ao longo dos seus trabalhos, tanto na psicologia clínica quanto nos movimentos gays, haver uma dificuldade dos homens gays de se identificarem como homens. Quais motivos você encontra para essa dificuldade?

Eu me lembro agora da Elizabeth Badinter, uma filósofa, escritora e historiadora francesa, que fala no seu livro XY: Sobre a identidade masculina que a masculinidade é forjada primeiro no imperativo, com aquelas frases que todo menino escuta desde sempre: “seja homem”, “endireita essa mão”, “fala grosso”; e depois em três negações: ser homem é (1) não ser uma mulher, (2) não ser um bebê e (3) não ser um homossexual. Para essa autora, a masculinidade precisa se opor a essas três experiências para que ela se erga como tal. Alguns teóricos mais atuais juntam esses três pilares em um só, para dizerem que, no fundo, o que existe aí é, na verdade, a aversão a tudo aquilo que é atribuído ao mundo feminino e que é associado à mulher, ao bebê e ao homossexual: sensibilidade, fragilidade, dependência, cuidado, etc. Portanto, o que esses autores dizem é que a masculinidade se constitui por uma negação de todos aqueles aspectos relacionados ao feminino. Você deve desejar uma mulher, mas você não pode incorporar ou apreender características, sentimentos e comportamentos do chamado mundo feminino. É uma interdição que tem por base a misoginia.

O que esse processo mostra é como a masculinidade é intimamente associada à ideia de heterossexualidade. Se você não corresponde às pautas dessa orientação sexual hegemônica, você recebe o tempo inteiro mensagens de que você não é homem. Quando um garoto começa a sentir e a perceber um desejo mais indiferenciado, que seria um desejo por homens e mulheres, ou até mesmo um desejo mais direcionado aos seus pares, isso o leva a desacreditar na sua identidade como homem. Essa ideia também é reforçada socialmente. É muito comum ouvirmos a pergunta: “Fulano é homem ou é gay?”, como se fossem vivências excludentes.Os desdobramentos que seguem são muitos: esses garotos, comumente, se afastam de rituais e de atividades tidos como masculinos e de grupos de homens, e vão construindo sua identidade com essa ideia de que eles são algo diferente do ser homem, sendo que não são.

Eu me lembro de rodas de conversa que eu coordenei com jovens gays, quando fiz parte do Movimento Estruturação – Grupo Gay de Brasília, em que eles ficavam surpresos quando se davam conta que a matriz de homens gays e de homens héteros é a mesma. Ninguém foi educado e socializado para ser um homem gay, todo mundo foi educado e socializado para ser um homem heterossexual. A matriz é uma estrutura patriarcal e sexista, só que em determinado momento entra a questão do desejo e essa questão separa o caminho. Homens com uma orientação sexual dissidente são interpretados a partir dessa perspectiva colocada pela Badinter. Se não são homens (ou seja, heterossexuais) eles são alocados no universo feminino. Isso cria várias fantasias e confusões em jovens gays e bissexuais, e no seu entorno também. É uma visão heterossexuada de mundo.

casal homens com orientação sexual dissidente
Homossexualismo (#6), Claudia Andujar, 1967

Você acha que isso também é um fator que afasta esses homens desses novos movimentos masculinos?

Sim, e acredito haver aí duas questões. Primeiro, uma questão de identificação. Como se por ser gay ou bissexual você não tenha nada a ver com os homens que estão nesses movimentos, como se fossem coisas excludentes, como se tudo o que esses homens estão discutindo nos grupos não tivesse nada a ver com a minha vida. E segundo, é o medo de como eles vão enfrentar esse grupo, esse movimento dos homens, sendo homens com uma orientação sexual dissidente. Existe um termo trazido pelo sociólogo Daniel Welzer-Lang para designar aquelas masculinidades que se afastam da masculinidade hegemônica e dominante, isto é, aquele modelo do homem branco, hétero, cisgênero, jovem e rico. Esse autor chamou-as de masculinidades subalternas. Ele aponta que existe uma relação de poder até mesmo entre os tipos de masculinidade. Então, se eu sou um homem que se enquadra nessas masculinidades subalternas, como é que eu vou me sentir e me colocar num grupo de homens, me vendo dentro de uma relação de poder em que eu acabo sendo desfavorecido?! É preciso discutir as relações de poder entre as masculinidades. Essa tensão precisa aparecer. Caso contrário, ela será sentida por alguns homens, que permanecerão em silêncio nos grupos ou até mesmo irão abandoná-los. Assim, perde-se a chance de se discutir a convivência com a diferença e as relações desiguais de poder. O grupo deixa de ser inclusivo.

Não raro vemos aparecer, em resposta às pautas feministas ou LGBTQ+, um discurso masculino ressentido que pode tomar muitas formas. São discursos que geralmente tentam relativizar o preconceito e a violência. Como você vê esses discursos?

Minimizar ou relativizar a violência sofrida por esses grupos feministas ou LGBTQ+ não deixa de ser uma nova forma de violência, uma violência secundária. É como se você tivesse dizendo: “ah você tá sofrendo, mas não é bem assim”, “ele agrediu mas ele não bateu”, “mas ninguém tocou em você, só te xingou ou só te mandou sair do estabelecimento”. O efeito disso é muito ruim. Uma das formas de elaboração do sofrimento e do trauma passa por um reconhecimento, social e pessoal, da existência da violência. Se esse reconhecimento é negado, não é permitido que a pessoa elabore esse conteúdo. Isso é uma nova violência.

citação sobre privilégio masculino

Não se relativiza só a violência que esses grupos sofrem, mas muitas vezes há uma desconsideração da importância da luta desses grupos. E aí eu acho que entra a ignorância, no sentido de desconhecimento mesmo, da falta de informação sobre a história. Existe uma história do movimento feminista, do movimento negro e do movimento LGBT, por meio das quais é possível perceber que a luta dessas pessoas hoje tem uma raiz sócio-histórica. Se a gente não enxergar todo esse espectro, a gente vai achar que isso hoje em dia é bobagem, “porque falar disso?!”. Muita gente critica o movimento feminista sem nunca ter lido nada, ou baseado numa entrevista que uma menina blogueira (que se diz feminista) deu num programa de TV… isso é muito pouco.

Existe uma outra questão que é igualmente importante: é muito difícil para quem está num lugar de privilégio saber do que o outro tá falando. Porque quem enxerga o privilégio é quem não o tem, quem vive sem, enquanto quem tá sentado no privilégio não consegue entender do que dizem. Então, por exemplo, não é difícil achar um homem heterossexual que acha que os homens gays têm privilégios. Mas um homem hétero nunca vai ter a sua orientação sexual usada para te atacar como pessoa. Seu valor nunca vai ser medido pela sua orientação sexual. Quantos homens tem a sua inteligência, competência, índole, capacidade de trabalho e capacidade para criar filhos questionadas simplesmente por serem homossexuais? Vários! Essa é uma experiência muito presente na vida de homens gays/bissexuais. É por isso que eu acho que esse lugar de privilégios precisa ser perturbado e problematizado, para que a maioria dos homens se desloque e possa ver que o mundo que eles enxergam é um mundo possível para  poucos, e que existe um grupo grande de pessoas que não estão satisfeitas por terem suas existências negadas e que buscam outros lugares. Por isso elas lutam, protestam e vão às ruas.

casal gay masculinidades dissidentes
Homossexualismo (#10), Claudia Andujar, 1967

Você falou de como é usado contra os gays a sua orientação sexual para invalidar uma série de comportamentos que não seriam questionados fossem eles heterossexuais. Você dá como exemplo a criação de filhos. Sabemos de toda a problemática que ainda se tem com a adoção de crianças por pais e mães homoafetivos. Queria que você comentasse um pouco sobre isso.

É muito bom você trazer esse ponto porque eu acho que o preconceito em relação à socialização das crianças por homens homossexuais vem da leitura de que essas sexualidades são sexualidades desviantes, e portanto marginais e patológicas. Consequentemente, esses homens teriam também um desvio de caráter. A psiquiatria reforçou isso ao longo da história, assim como o sistema legal.  

citação sobre patologização da homossexualidade

O livro de James Green, Além do Carnaval, que fala da homossexualidade no Brasil no século XX, demonstra que o discurso sobre a homossexualidade estava nas mãos da ciência, representada pela medicina, e do direito, que era a criminologia. Essas duas ciências criaram, assim, um discurso sobre a homossexualidade que a representava como uma disfunção endógena. É dessa época o livro Homossexualismo e Endocrinologia, do médico Leonídio Ribeiro. Com a cultura moral da época, essa disfunção passa a ser vista como uma fator de propensão à criminalidade. Para termos um exemplo, numa situação em que aconteceu um assassinato, quem logo aparecia como suspeito? O chamado “pederasta”, juntamente com a prostituta, o usuário de drogas… todos os tipos que fugiam do modelo da boa moral e bons costumes. Pensava-se que se um homem é capaz de transgredir o desejo natural por uma mulher a ponto de se deitar com outro homem, o que mais ele seria capaz de fazer?

Isso vem mudando. Os órgãos da ciência e do Direito foram se reformulando ao longo do tempo. Então temos, por exemplo, a Associação Americana de Psiquiatria que excluiu a homossexualidade do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, ou, no Direito, a legalização das relações homoafetivas e outras medidas de validação dessa forma de ser, como as sentenças judiciais favoráveis à adoção de crianças por homens gays solteiros ou casais de pessoas do mesmo sexo.  A despeito desses avanços, ainda é muito frequente vermos a associação da homossexualidade com uma sexualidade patológica e desviante. É dessa associação que se cria a crença de que as crianças criadas por essas pessoas (LGBTQ+s) ou serão vítimas de abusos e maus-tratos ou serão elas mesmas desviadas do caminho da orientação sexual hegemônica, ou seja, elas vão ser como os pais. O que está por trás disso é o preconceito, porque se os pais aceitam uma sexualidade dissidente eles não precisam se preocupar se seus filhos e filhas serão héteros ou não.

Sérgio Bitencourt Maciel é psicoterapeuta, especialista em psicologia clínica; Psicólogo social e jurídico (CRP 01/5783); psicodramatista, terapeuta conjugal e familiar, além de terapeuta sexual. E-mail para contato: [email protected]

O Homens em Conexão publica textos e entrevistas com o objetivo de fomentar a discussão e reflexão. O conteúdo da entrevista é de responsabilidade do entrevistado, e não necessariamente expressa a opinião do Homens em Conexão.

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Wagner
Wagner
3 anos atrás

Receio por preconceito ou do preconceito? Os sentimentos de incompreensão, rejeição e medo são vividos por muitos e outros preferem se manter escondidos, falsos e mentirosos, a viver a verdade além do espelho.

Leo
Leo
3 anos atrás

Muito boa a entrevista!! Nos faz pensar sobre masculinidade e suas diferentes formas de expressão.
Parabéns!

Lucas
Lucas
3 anos atrás

Ser homem vai além de quem vc se relaciona ou msm do órgão sexual que vc possui. Ser homem é ser hétero, é ser gay, é ser um homem que nasceu com o órgão feminino e que msm assim não tem menos valor. Ser homem é mais que um conjunto de comportamentos de reafirmação. Essa entrevista ficou muito boa, o defeito é que teve um fim.

Observador
Observador
2 anos atrás

Diria que nos anos 60, a Sexualidade bem fluida foi e, período chamado de anos dourados! Muitos avós, atualmente na política e artistas, meramente amigos ou unidos ideologicamente, digamos assim, com suas famílias formadas, mas na juventude, mantiveram relações homoafetivas, razão das famílias se visitarem por décadas, mas se for perguntar aos netos de cada um, ouviremos que lutavam pela mesma causa e irão se orgulhar da militância; a sexualidade fluida, que poderíamos “enquadrar” como bissexuais, dos avós desses netos, nem cogitarao! Muitas vezes, a gente assistindo reuniões de equipe nas empresas, logo vem analistas comentar sobre ambiente organizacional competitivo demais ou não, que pode adoecer seus membros, a equipe. Nunca cogitaram a afetividade entre homens entre si e, claro, mulheres entre si! Já teve alguns colegas que me despertaram atração, fomos amigos, chegamos a intimidade (claro separadamente)! O mais “amadurecido” clima, foi finda a reunião que houve, no meu local de trabalho, o colega, discreto quanto a sua sexualidade, mas despertando atenção de todos pelo combo: beleza e falar, fomos eu e ele ficando por último e, no motel meio que voltamos a adolescência: com a ereção que ele estava, foi com cautela me penetrando até que percebeu meu esfincter relaxado, riu e disse foi conexão mutua é! Pelo prazer que tivemos, tivemos outras transas: sem nos rotulamos sexualmente e rimos da hipocrisia heteronormativa, que nem cogitaria que eu e ele, cisgeneros, pudéssemos nos completar! E ali na equipe, poderia haver relações lésbicas, mas que sempre mais difícil “detectar”: mulheres são de elogiar-se, mutuamente, corpo e traje!